Há
leituras que pouco nos dizem. Mas há aquelas que em suas primeiras linhas nos
prendem até ao fim. Pela simplicidade, pela estória conturbada que se nos
apresenta, por um caráter poético, talvez, pelo conteúdo, pelo ar
contemplativo, por valores envolvidos, por um “descer à alma” do escritor.
Esta
pequena leitura de Saramago fez com que eu o admirasse, apesar de ter tido um
primeiro contato com suas idéias por meio da película Ensaio sobre a
Cegueira, brilhante filme desenvolvido por capital e elenco trinacional
(Brasil, Japão e Canadá), dirigido por Fernando Meirelles, de 2008.
Por seu efetivo
reconhecimento internacional em favor da prosa em língua portuguesa, em agosto
de 1985 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Sant'Iago da
Espada, em 1995, com o Prêmio Camões, maior prémio literário da língua
portuguesa, em dezembro de 1998 foi elevado ao Grande-Colar da mesma Ordem.
Neste mesmo mês de dezembro também recebeu o prêmio Nobel de Literatura.
Após a publicação do “Evangelho segundo Jesus Cristo”, em 1991, começou a ser boicotado em seu país e a sofrer perseguições da Igreja Católica, sendo que em 1993 a publicação de novos livros chegou a ser proibida em Portugal.
Após a publicação do “Evangelho segundo Jesus Cristo”, em 1991, começou a ser boicotado em seu país e a sofrer perseguições da Igreja Católica, sendo que em 1993 a publicação de novos livros chegou a ser proibida em Portugal.
Com
este feito, e em repúdio, mudou-se para a ilha vulcânica de Lanzarote
(Espanha), pertencente ao arquipélago das ilhas Canárias.
Dizia-se
ateu, e foi filiado ao partido comunista de Portugal. Isto explica em parte
lançar-se à escrita do livro já citado.
O
que não percebeu é que, por mais que tenha expressado um olhar diferente,
ousado, e para alguns, até ofensivo sobre o sagrado, em realidade sua
alma ansiava pela busca do Cristo. Era um humanista acima de tudo, e
refletia isso em seus escritos, esquecendo-se que sua busca já estava em sí,
pois Deus concede carismas a seus eleitos. O seu era difundir esse
humanismo através de seus livros.
Nasceu na cidade de Azinhaga, na região de Golegã, Portugal, em 16 de novembro
de 1922. Faleceu no dia 18 de Junho de 2010, aos 87 anos de idade,
na sua casa em Lanzarote onde residia com a mulher, vítima de leucemia crônica.
Publicado
por Fundação José Saramago - Sexta-feira, 28 de Agosto de 2009
A junta do motor
Desde há mais de sessenta anos que eu deveria saber conduzir um
automóvel. Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas
máquinas de trabalho e de passeio, desmontava e montava motores, limpava
carburadores, afinava válvulas, investigava diferenciais e caixas de mudanças,
instalava calços de travões, remendava câmaras de ar furadas, enfim, sob a
precária protecção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia
das nódoas de óleo, efectuei com razoável eficiência quase todas as operações
por que é obrigado a passar um automóvel ou um camião a partir do momento em
que entra numa oficina para recuperar a saúde, tanto a mecânica como a
eléctrica.
Só faltava que me sentasse um dia atrás do volante a fim de receber do
instrutor as lições práticas que deveriam culminar no exame e na sonhada
aprovação que me permitiria ingressar na ordem social cada vez mais numerosa
dos automobilistas encartados.
Mais ainda: por muito paradoxal que a afirmação vá parecer a quem das
íntimas conexões entre as causas e os efeitos somente tiver ideias elementares,
se nos meus verdes anos não tivesse trabalhado como serralheiro-mecânico numa
oficina de automóveis, hoje, provavelmente, saberia conduzir um carro, seria um
orgulhoso transportador em lugar de um humilde transportado.
Além das operações que comecei por referir, e como parte obrigatória de algumas
delas, também substituía as juntas dos motores, essas finas placas forradas de
folha de cobre sem as quais seria impossível evitar fugas da mistura gasosa de
combustível e ar entre a cabeça do motor e o bloco dos cilindros.
Se a linguagem que estou a usar parecer ridiculamente arcaica aos
entendidos em automóveis modernos, mais governados por computadores do que pela
cabeça de quem os conduz, a culpa não é minha: falo do que conheci, não do que
desconheço, e muita sorte que não me ponha aqui a descrever a estrutura das
rodas dos carros de bois e a maneira de atrelar estes animais ao jugo.
É matéria igualmente arcaica em que também tive alguma competência).
Ora, um dia, depois de ter acabado o trabalho e colocado a junta no seu sítio,
depois de ter apertado com a força dos meus dezanove anos as porcas que
sujeitavam a cabeça do motor ao bloco, dispus-me a realizar a última fase da
operação, isto é, encher de água o radiador.
Desenrosquei pois o tampão e comecei a deitar para a boca do radiador a
água com que tinha enchido o velho regador que para esse e outros efeitos havia
na oficina. Um radiador é um depósito, tem uma capacidade limitada e não aceita
nem um mililitro mais do que a quantidade de água que lá caiba. Água que
continue a deitar-se-lhe é água que transborda.
Algo de estranho, porém, se estava a passar com aquele radiador, a água
entrava, entrava, e por mais água que lhe metesse não a via subir dançando até
à boca, que seria o sinal de estar acabado o enchimento. A água que já vertera
por aquela insaciável garganta abaixo teria bastado para satisfazer dois ou
três radiadores de camião, e era como se nada.
Às vezes penso que, sessenta e muitos anos passados, ainda hoje estaria
a tentar encher aquele tonel das Danaides se em certa altura não me tivesse
apercebido de um rumor de água a cair, como se dentro da oficina houvesse uma
pequena cascata. Fui ver. Pelo tubo de escape do carro saía um avultado jorro
de água que, pouco a pouco, diante dos meus olhos estupefactos, foi diminuindo
de caudal até ficar reduzido a umas derradeiras e melancólicas gotas. Que se
passara?
Tinha colocado mal a junta, tapara entre a cabeça do motor e o bloco o
que deveria ter aberto, e, muito mais grave do que isso, facilitara passagens e
comunicações onde não deveria havê-las. Nunca cheguei a saber que voltas teve
de dar a pobre água para ir sair ao tubo de escape. Nem quero que mo digam
agora. Para vergonha bastou. Possivelmente terá sido nesse dia que comecei a
pensar em tornar-me escritor. É um ofício em que somos ao mesmo tempo motor,
água, volante, mudanças de velocidade e tubo de escape. Talvez, afinal, o
trauma tenha valido a pena.
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