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Saturday 3 January 2015

A junta do Motor - Saramago


 

Há leituras que pouco nos dizem. Mas há aquelas que em suas primeiras linhas nos prendem até ao fim. Pela simplicidade, pela estória conturbada que se nos apresenta, por um caráter poético, talvez, pelo conteúdo, pelo ar contemplativo, por valores envolvidos, por um “descer à alma” do escritor.


Esta pequena leitura de Saramago fez com que eu o admirasse, apesar de ter tido um primeiro contato com suas idéias por meio da película Ensaio sobre a Cegueira, brilhante filme desenvolvido por capital e elenco trinacional (Brasil, Japão e Canadá), dirigido por Fernando Meirelles, de 2008.

Por seu efetivo reconhecimento internacional em favor da prosa em língua portuguesa, em agosto de 1985 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, em 1995, com o Prêmio Camões, maior prémio literário da língua portuguesa, em dezembro de 1998 foi elevado ao Grande-Colar da mesma Ordem. Neste mesmo mês de dezembro também recebeu o prêmio Nobel de Literatura.


Após a publicação do “Evangelho segundo Jesus Cristo”, em 1991, começou a ser boicotado em seu país e a sofrer perseguições da Igreja Católica, sendo que em 1993 a publicação de novos livros chegou a ser proibida em Portugal.

Com este feito, e em repúdio, mudou-se para a ilha vulcânica de Lanzarote (Espanha), pertencente ao arquipélago das ilhas Canárias.

Dizia-se ateu, e foi filiado ao partido comunista de Portugal. Isto explica em parte lançar-se à escrita do livro já citado.

O que não percebeu é que, por mais que tenha expressado um olhar diferente, ousado, e para alguns, até ofensivo sobre o sagrado, em realidade sua alma ansiava pela busca do Cristo. Era um humanista acima de tudo, e refletia isso em seus escritos, esquecendo-se que sua busca já estava em sí, pois Deus concede carismas a seus eleitos. O seu era difundir esse humanismo através de seus livros.

Nasceu na cidade de Azinhaga, na região de Golegã, Portugal, em 16 de novembro de 1922. Faleceu no dia 18 de Junho de 2010, aos 87 anos de idade, na sua casa em Lanzarote onde residia com a mulher, vítima de leucemia crônica.



 

 

 
 

Publicado por Fundação José Saramago - Sexta-feira, 28 de Agosto de 2009




A junta do motor

Desde há mais de sessenta anos que eu deveria saber conduzir um automóvel. Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas de trabalho e de passeio, desmontava e montava motores, limpava carburadores, afinava válvulas, investigava diferenciais e caixas de mudanças, instalava calços de travões, remendava câmaras de ar furadas, enfim, sob a precária protecção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo, efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel ou um camião a partir do momento em que entra numa oficina para recuperar a saúde, tanto a mecânica como a eléctrica.

Só faltava que me sentasse um dia atrás do volante a fim de receber do instrutor as lições práticas que deveriam culminar no exame e na sonhada aprovação que me permitiria ingressar na ordem social cada vez mais numerosa dos automobilistas encartados.
 
Contudo, esse dia maravilhoso nunca chegou. Não são apenas os traumas infantis que condicionam e influem a idade adulta, também os que se sofrem na adolescência podem vir a ter consequências desastrosas e, como no presente caso sucedeu, determinar de maneira radicalmente negativa a futura relação do traumatizado com algo tão quotidiano e banal como é um veículo automóvel. Tenho sólidas razões para crer que sou o deplorável resultado de um desses traumas.
 
Mais ainda: por muito paradoxal que a afirmação vá parecer a quem das íntimas conexões entre as causas e os efeitos somente tiver ideias elementares, se nos meus verdes anos não tivesse trabalhado como serralheiro-mecânico numa oficina de automóveis, hoje, provavelmente, saberia conduzir um carro, seria um orgulhoso transportador em lugar de um humilde transportado.
 
Além das operações que comecei por referir, e como parte obrigatória de algumas delas, também substituía as juntas dos motores, essas finas placas forradas de folha de cobre sem as quais seria impossível evitar fugas da mistura gasosa de combustível e ar entre a cabeça do motor e o bloco dos cilindros.
Se a linguagem que estou a usar parecer ridiculamente arcaica aos entendidos em automóveis modernos, mais governados por computadores do que pela cabeça de quem os conduz, a culpa não é minha: falo do que conheci, não do que desconheço, e muita sorte que não me ponha aqui a descrever a estrutura das rodas dos carros de bois e a maneira de atrelar estes animais ao jugo.
 
É matéria igualmente arcaica em que também tive alguma competência). Ora, um dia, depois de ter acabado o trabalho e colocado a junta no seu sítio, depois de ter apertado com a força dos meus dezanove anos as porcas que sujeitavam a cabeça do motor ao bloco, dispus-me a realizar a última fase da operação, isto é, encher de água o radiador.
 
Desenrosquei pois o tampão e comecei a deitar para a boca do radiador a água com que tinha enchido o velho regador que para esse e outros efeitos havia na oficina. Um radiador é um depósito, tem uma capacidade limitada e não aceita nem um mililitro mais do que a quantidade de água que lá caiba. Água que continue a deitar-se-lhe é água que transborda.
 
Algo de estranho, porém, se estava a passar com aquele radiador, a água entrava, entrava, e por mais água que lhe metesse não a via subir dançando até à boca, que seria o sinal de estar acabado o enchimento. A água que já vertera por aquela insaciável garganta abaixo teria bastado para satisfazer dois ou três radiadores de camião, e era como se nada.
 
Às vezes penso que, sessenta e muitos anos passados, ainda hoje estaria a tentar encher aquele tonel das Danaides se em certa altura não me tivesse apercebido de um rumor de água a cair, como se dentro da oficina houvesse uma pequena cascata. Fui ver. Pelo tubo de escape do carro saía um avultado jorro de água que, pouco a pouco, diante dos meus olhos estupefactos, foi diminuindo de caudal até ficar reduzido a umas derradeiras e melancólicas gotas. Que se passara?
 
Tinha colocado mal a junta, tapara entre a cabeça do motor e o bloco o que deveria ter aberto, e, muito mais grave do que isso, facilitara passagens e comunicações onde não deveria havê-las. Nunca cheguei a saber que voltas teve de dar a pobre água para ir sair ao tubo de escape. Nem quero que mo digam agora. Para vergonha bastou. Possivelmente terá sido nesse dia que comecei a pensar em tornar-me escritor. É um ofício em que somos ao mesmo tempo motor, água, volante, mudanças de velocidade e tubo de escape. Talvez, afinal, o trauma tenha valido a pena.
 José Saramago
 
 
 


 

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